quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Decisão do STJ anima fisco e Kia Motors


Fonte: Valor Econômico

Autoria: Cristine Prestes e Marli Olmos

Uma recente decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) garantiu à Kia Motors uma vitória importante na disputa com os sócios brasileiros da extinta Asia Motors do Brasil (AMB). A coreana, que controlava a Asia Motors Company (AMC), conseguiu a homologação quase completa da sentença do comitê de arbitragem da Câmara Internacional de Comércio (CCI), que condenou a subsidiária brasileira a indenizá-la pelas perdas decorrentes da fracassada tentativa de instalação de uma fábrica na Bahia na década de 90. No entanto, o julgamento no STJ também animou o fisco, que viu na decisão - e em especial no voto da ministra relatora - um argumento adicional para cobrar uma dívida de R$ 1,7 bilhão deixada pela AMB.
A Asia Motors do Brasil foi criada em 1993 para importar veículos da Coreia do Sul. Em 1997, dois sócios brasileiros e a Asia Motors Company, subsidiária da Kia Motors na Coreia, formaram uma joint venture com o intuito de construir uma fábrica no Brasil. A aliança, com 51% do capital nas mãos da empresa coreana, foi criada logo depois da entrada em vigor da lei que estabeleceu o regime automotivo brasileiro. A ideia era instalar uma fábrica na Bahia em troca de uma redução de 50% no imposto de importação incidente sobre automóveis e peças trazidos do exterior. Durante dois anos a AMB usufruiu do benefício fiscal até que, em 1998, o plano de instalar a fábrica no país foi abortado quando a Kia Motors encerrou os negócios da AMC em todo o mundo após ser adquirida pela Hyundai.
Ao desistir de instalar a fábrica na Bahia, a controladora Kia iniciou uma disputa com os sócios brasileiros na CCI com o intuito de ser ressarcida dos prejuízos pelo investimento fracassado. A decisão da CCI saiu em 2004 e condenou a AMB a pagar à Kia US$ 79 milhões, com juros de 6% ao ano, por veículos que recebeu da AMC e outros US$ 10 milhões, com multa de 10% e juros de 1% ao mês, pela assistência técnica prestada. Parte dos sócios brasileiros também foi condenada a pagar à Kia US$ 30 mil por danos morais e US$ 3,9 milhões em custos da arbitragem. Em 19 de outubro o STJ homologou parcialmente a sentença arbitral, que agora poderá ser executada no Brasil.

Embora a disputa entre os sócios da AMB tenha sido definida, ainda resta o desfecho de outra disputa - esta com o fisco brasileiro. A empresa encerrou suas atividades deixando uma dívida tributária de cerca de R$ 1,7 bilhão, decorrente do usufruto dos benefícios fiscais do regime automotivo. As ações de execução da dívida fiscal tramitam na primeira e na segunda instâncias da Justiça Federal contra a AMB e seus sócios - entre eles a Kia Motors, que se defende com o argumento de que não tem responsabilidade pela AMB.
Agora, ao homologar a sentença arbitral, o STJ, segundo a avaliação do fisco, deixou uma porta aberta para a cobrança da dívida. Isso porque a ministra Maria Thereza de Assis Moura, relatora do processo julgado na corte especial do STJ, deixou claro que a decisão homologada não exime a Kia das obrigações que decorrem do negócio da qual era sócia no Brasil.
Embora o acórdão não tenha sido publicado ainda, a reportagem do Valor teve acesso a parte do voto da ministra do STJ, que afirmou que a decisão "não estava a eximir a (Kia Motors) das obrigações advindas do negócio jurídico legalmente pactuado, e enquanto partícipe da relação societária, das imposições legais, incluindo-se aí, obviamente, sujeições tributárias e outras a serem verificadas em espaço próprio e foro competente do Judiciário brasileiro." E a ministra ainda continuou no tema ao afirmar que a Kia Motors "está vinculada às obrigações tributárias assumidas com a atividade da Asia Motors do Brasil e em cuja participação detinha o controle acionário, controle esse mantido e não anulado pela decisão arbitral."
A Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) está no aguardo da publicação do acórdão do STJ para tomar as providências necessárias para dar continuidade à cobrança da dívida tributária da AMB. "Temos cobranças em curso e podemos robustecer a execução com a decisão", diz o coordenador -geral de representação judicial da PGFN, Cláudio Xavier Seefelder Filho. Ele confirma que os ministros da corte tangenciaram a questão tributária na decisão, preservando a relação tributária entre o fisco e a AMB e seus controladores. "A decisão veio ao encontro dos esforços da Fazenda na recuperação dos créditos", diz. Segundo ele, apenas após a publicação é que será avaliado um possível pedido de sucessão que atinja a Hyundai.
A Hyundai, que acaba de construir os prédios de uma grande fábrica de automóveis em Piracicaba (SP), a ser inaugurada em 2012, poderá ser cobrada por ter adquirido a Kia Motors num leilão realizado na Coreia do Sul em 1998. Por meio de porta-voz, a Hyundai Motor Brazil informou que "não comenta o assunto por não ser parte envolvida em nenhum momento do processo judicial sobre a dívida da Asia Motors do Brasil".
Se o fisco avalia que o julgamento foi favorável à cobrança da dívida, a Kia Motors considera a validação da sentença da CCI no Brasil uma vitória - já que a única parte da sentença arbitral não homologada pelos ministros da corte é a que trata de um aumento de capital promovido pela AMB em 1998 - e que, segundo a decisão da CCI, foi nulo. "E o STJ não homologou porque também já tinha julgado nulo o procedimento", diz o advogado Fabiano Robalinho Cavalcanti, do escritório Sergio Bermudes, que defende a coreana. De acordo com ele, a partir da publicação do acórdão será possível executar a decisão da CCI no Brasil - ou seja, instaurar processos de execução contra os sócios brasileiros da AMB na Justiça Federal. O advogado afirma que somente os veículos vendidos à AMB e não pagos somam R$ 215 milhões, em valores atualizados.
Cavalcanti é enfático ao afirmar que a decisão representa uma completa vitória para a Kia, que tenta há seis anos homologar a decisão da CCI no Brasil. E que a dívida da AMB com o fisco não foi motivo de julgamento pelo STJ. "O que os ministros disseram foi que a questão tributária será avaliada pelo Poder Judiciário", afirma.
O principal sócio brasileiro do que seria uma fábrica da Asia Motors no Brasil é Washington Armênio Lopes, um empresário do setor de comércio que, na época da negociação com os coreanos, era importador da marca Asia. A chance de uma fábrica no Brasil dar certo surgiu com o sucesso dos veículos utilitários que ele trazia da Coreia - Towner e Topic, que passavam a representar a maior ameaça da legendária Kombi. Surgiu, então o acordo de joint venture entre A Asia Motors Corporation, que deteria 51% das ações da joint venture e o direito de controlar a empresa, e o grupo brasileiro. A pedra fundamental da futura fábrica acabara de ser lançada em Camaçari, no terreno hoje ocupado pela Ford, quando a crise atingiu o grupo coreano.
O advogado Marcus Vinicius Vita Ferreira, do escritório Wald Associados Advogados, que defende Armenio Lopes, afirma que vai esperar a publicação do acórdão do STJ para avaliar a decisão. Isso porque, segundo ele, parte da condenação da CCI recai sobre a própria AMB, que tem a Kia como sócia. Ele diz ainda que apenas após a publicação decidirá se vai recorrer da decisão.

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